PCHs no Rio Cuiabá vão acabar com peixes do Pantanal, produção de mel, plantios e atingir cultura, diz especialista

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Segunda, 23 Agosto 2021 | OlharDireto
Engana-se quem pensa que a construção de uma pequena central hidrelétrica (PCH) em um rio afeta somente os peixes. É o que explica o biólogo, ecólogo e ictiólogo (especialista em peixes) Francisco de Arruda Machado, mais conhecido como ‘Professor Chico Peixe’. Segundo ele, é necessário olhar a questão de forma holística, e entender que as alterações vão do estoque pesqueiro de toda a bacia do Pantanal até a produção de mel, a polinização em plantios, a cultura dos cuiabanos e a alimentação de muita gente que só tem o peixe como ‘mistura’. Além disso, os contra-argumentos de ‘geração de empregos’ e uso de escadas de peixe ou comportas abertas na piracema não passam de ilusão.
Francisco é mestre em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (1983) e doutor em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (2003). É professor aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Assessor Especial no Ministério Público do Estado de Mato Grosso, assessorando nas questões ambientais relacionadas com peixes e animais de modo geral.
Segundo o professor, há um estudo feito pela Agência Nacional da Água (ANA) com a participação de 253 pessoas, sendo 70 pesquisadores, com dois anos de construção e quatro em campo, que concluiu que há áreas de Mato Grosso onde não há prejuízo em construir PCHs, enquanto há outras onde não deveriam ser construídas de forma alguma. Uma dessas áreas ‘proibidas’ é o Rio Cuiabá, onde acontece quase 50% do processo reprodutivo das mais importantes espécies da bacia do Pantanal, como pacu, pintado, cachara, piraputanga, dourado, dentre outros. E é neste local que há o planejamento para a implantação de não uma, mas seis PCHs.
Em um primeiro momento, a consequência imediata, segundo Chico Peixe, será a diminuição da profundidade do rio. “Vai ter momentos do dia que o Rio Cuiabá, para baixo das usinas - que é mais ou menos próximo de Passagem da Conceição até a confluência com o Manso - ele vai ter uma vasão menor que o Coxipó. O Coxipó já está super combalido, o Cuiabá já está super combalido, você imagina olhar o rio Cuiabá hoje e atravessá-lo com a água na canela. Vai ser igual ao [rio] Jauru. O [rio] Jauru as seis usinas que foram construídas lá, local que tinha 1,80m de profundidade, hoje tem 25, 30cm em determinados momentos”, lamenta o professor.
Com a baixa do nível, há, consequentemente, diminuição no número de peixes, o que vai influenciar em toda a bacia pantaneira, e não só na baixada cuiabana. “Vamos bloquear cerca de 50% do efetivo que abastece o Pantanal, incluindo Mato Grosso do Sul. (...) O Manual de Peixes do Pantanal conta que tem 264 espécies. Nós que estudamos peixes estamos sabendo que o Pantanal, enquanto região geológica, é componente de uma área inundada, uma área inundável e planalto, e essa área de inundação e inundada não sobrevive sem o planalto. Nós estamos tirando a possibilidade de, a partir de agora, peixes se reproduzam. E no momento que você faz uma que for, você muda a assinatura do rio, você muda todos os aspectos do rio”, complementa.
Segundo Chico, a explicação também está no fato de os ovos e as larvas serem levados pela correnteza, o que não aconteceria caso o rio estivesse bloqueado, assim como, segundo ele, aconteceu com Barão de Melgaço após a construção da Usina do Manso.
“Porque Manso desgraçou o Pantanal de Barão de Melgaço? Porque na época de chuva você tem um efetivo de água que fica estocada no campo, por isso chama área inundável. Quando o rio Cuiabá perdia calha naturalmente, essa água daqui do rio emendava com a água do campo. Esse peixe que reproduziu aqui, os ovos e larvas automaticamente iam para a zona de inundação, que a profundidade chega a 80cm nesses locais e a temperatura da água chega a 45º. Essa temperatura alta que faz a alta produtividade, altas temperaturas e alimento farto você chega em 3, 5 meses o bicho sai de ovo, para larva, para alevino. Antes de Manso você ia para Barão de Melgaço, não tinha asfalto, qualquer reguinho daqueles você jogava a tarrafa e pegava 60 dourados, 60 piraputangas, hoje você não consegue pegar uma, porque essa área deixou de existir”.
Sem peixe, não tem pesca. Sem pesca, não têm pratos tradicionais na mesa. A falta de peixes traz consequências à cultura cuiabana, que é voltada para o rio, principalmente na gastronomia, e também consequências socioeconômicas a famílias de pescadores e ribeirinhos. Segundo Francisco, somente de Nobres a Barão de Melgaço há, por mês, cerca de 700 mil pescadores (pessoas que vão e voltam diariamente para pescar). A pesca profissional gera cerca de R$ 29 milhões por ano, a turística, R$ 120 milhões, e a difusa (dos que vão e voltam todos os dias), R$ 1,443 bilhão em toda a bacia. “Isso gera uma economia de casa de pesca, casa de caça e pesca, mas essa economia que coloca todos os dias o peixe na mesa daquelas pessoas que comem todo dia o peixe, que é a única mistura que tem, deixará de ter. Então as pessoas falam: ‘ah, esse pessoal gera R$ 120 bilhões para o estado”, mas você tira da mesa do pobre R$ 600 milhões. Que economia é essa?”, questiona.
Olhando além do pescado, o professor faz uma análise do todo e de como as PCHs vão prejudicar até mesmo quem trabalha com agricultura: “O rio não tem declividade, não tem cachoeira, que justifique você fazer uma usina, mesmo que seja a fio d’água. Vai ter que fazer um barramento, estocar água para gerar usina. O que vai acontecer? Os nutrientes, que é o que dão vida ao rio, a todos os seres vivos da cadeia que começam com as microalgas, com microcrustáceos e aí afora, esses nutrientes vão sedimentar porque não tem jeito. E ele que é um rio bem caudaloso, vai ficar um rio remansoso. Isso vai afetar inclusive os insetos, já que a maioria tem o estágio larval na água. E aí você vai ter vários problemas, como produção de mel, um efetivo significativo da floresta vai inundar, os próprios plantios, seja qual forem, já que muitos são polinizados por insetos, que não vai ter neste local. E o que fica para uma visão economicista da questão? Quem vai construir seis usinas vai ter um lucro fenomenal”.
Contra-argumentos
Quem defende a construção das usinas argumenta que as comportas ficarão abertas durante a piracema e haverá também ‘escadas’ de peixes, o que ajudará a não prejudicar a existência das espécies. Chico Peixe discorda. “Quem estuda peixe como é meu caso - todos meus estudos foram com base comportamental – sabe que você tem peixe de superfície, peixe de meia água e peixe de fundo, só para dividir em três. Aí você vai deixar aberta, mas as comportas vão ficar abertas no fundo. Como você vai, todo dia, mandar um peixe para a escola para ensinar o lá de cima que ele só pode passar embaixo e o da meia água que ele só pode passar embaixo?”. Além disso, segundo o professor, a própria morfologia corporal de algumas espécies não permite que eles passem por estas comportas.
Além disso, o período da piracema não é o único importante para a manutenção do estoque pesqueiro. A ‘lufada’, que geralmente acontece no mês de abril, é quando os peixes saem dos alagados após crescerem nestes locais e já começam sua migração para se reproduzir no futuro. Com comportas fechadas, já que em abril já acabou a piracema, não tem como os animais migrarem no rio.
A escada também não tem muita serventia. Segundo Chico Peixe, ela funciona apenas para cerca de 30% dos peixes de algumas espécies. Além disso, muitos dos que conseguem ‘subir’, depois não descem. “Em certas circunstancias a escada é legal, mas ela termina sendo um engodo, porque ela sobe os bichos, mas eles não voltam. Você pode até fazer transferência dos que estão embaixo para cima, em certas circunstâncias, mas a maioria termina sendo nociva porque vai fazer a transferência, o bicho que sobe se reproduz, mas os jovenzinhos que nascem e viram alevinos, eles não voltam. E o reservatório não é um lago que eles podem crescer, virar adulto e ir dali para cima. Então eles não descem, e os que conseguem descer você não tem como fazer placas para indicar onde está a escada”, completa.
Por fim, há o argumento de que com a construção da usina são gerados milhares de empregos. Para Chico Peixe, essa é mais uma falácia, já que estes empregos são somente temporários e para operar uma usina pronta são necessários somente seis guardas e seis técnicos. “Exemplo de Aripuanã, em especial, que eu acompanhei muito bem: 30% do efetivo de Aripuanã migrou para Colniza depois das usinas. O que ficou? Se você fizer uma pesquisa social você vai ver quantos filhos sem pai que tem. Tem que ter uma visão holística da questão”, completa.
O projeto
As seis PCHs projetadas pela Maturati Participações no Rio Cuiabá receberam os nomes de Guapira II, Iratambé I, Iratambé II, Angatu I, Angatu II, e Perudá. A advogada da empresa, Fabrina Gouvea, informou que o processo de outorga na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) teve início em abril de 2010, o processo de licenciamento na Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema) em abril de 2019 e pedido de outorga na Agência Nacional de Águas (ANA) foi feito em junho de 2020. O representante da Sema, Eneas Figueiredo, disse que o processo está em análise.
Segundo Chico Peixe, a própria empresa enviou um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) apresentado no Relatório de Impacto Ambiental (Rima) à Sema, mas com muitas inconsistências, já que foi feito em pouco tempo e em apenas nove pontos do rio. Para o professor, a Sema deveria levar em conta o estudo da ANA, que é mais completo e aprofundado.
Recentemente, o deputado estadual Wilson Santos (PSDB) apresentou em plenário um Projeto de Lei para barrar a construção das seis pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) no Rio Cuiabá. Após a apresentação, segundo Santos, ele já conseguiu a assinatura de outros oito parlamentares no projeto. Ele ainda não foi votado.

 

 
 
 
 
 
 
 
 
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